Um conto de duas cidades na neve
23/01/14 11:00Na última terça-feira, nevou praticamente o dia todo em Nova York. E, durante todo o dia, ouvi o barulho de pneus patinando na leve subida da rua ao lado, o ruído dos motores sendo exigidos ao máximo e –é claro— o som ensurdecedor das buzinas dos menos pacientes com o desespero do carro da frente.
Por várias vezes pedestres pararam para ajudar a empurrar um carro que tentava avançar sobre a neve ainda fofa.
Estranhei a demora da prefeitura para limpar a rua, já que, na minha primeira nevasca por aqui –e a primeira também do novo prefeito, Bill de Blasio, no poder—, a rapidez com que os caminhões passaram removendo a neve pela cidade me surpreendeu.
Achei que, desta vez, a demora se justificava pela rua em questão não ser lá uma via tão importante.
Mas o noticiário do dia seguinte mostrou que o estranhamento tinha fundamento. Blasio foi colocado na parede durante uma coletiva de imprensa por, supostamente, ter sido negligente com o atendimento a alguns bairros, como o Upper East Side, uma das regiões mais ricas da cidade.
Na mídia local, destacou-se o fato de que, no Brooklyn, bairro em que o prefeito ainda mora, a neve foi removida rapidamente.
Em alguns tabloides, surgiu a teoria de que Blasio já poderia estar colocando em prática seu combate ao que ele apelidou de “o conto de duas cidades”, uma rica e uma pobre, dentro de Nova York.
“O Upper East Side não votou no Blasio (…) Ele quer nos enfurecer”, disse a moradora Molly Jong Fast ao tabloide “New York Post”.
“Não acredito que o Blasio fez isso, ele está colocando todo mundo em perigo”, disse Barbara Tamerin, outra moradora.
O prefeito negou que tenha “privilegiado” algum bairro no socorro pós-nevasca. “Ninguém foi tratado diferente”, disse. “Acreditamos na abordagem [de trabalho] das cinco zonas [Manhattan, Brooklyn, Queens, Bronx e Staten Island].”
Na quarta à tarde, no entanto, ele passou pelo bairro para conversar com moradores e ver a situação no local. Até aquele momento, mais de 15 horas depois de cessada a neve, carros ainda patinavam em alguns cruzamentos.
“Enquanto toda a resposta à nevasca foi bem executada pela cidade, poderíamos ter feito mais para ajudar o Upper East Side”, admitiu.
Esse foi só o primeiro exemplo de como Blasio pode ter se tornado refém do próprio discurso de combate à desigualdade, que o ajudou a ser eleito. O “conto de duas cidades”, referência à ficção de Charles Dickens, já mostrou que tem potencial para ganhar inúmeras leituras nos diferentes bairros de Nova York e ser usado contra ele nos próximos quatro anos.
Para os moradores de Manhattan, do Bronx ou do Brooklyn, vai ser preciso ficar bem claro daqui para frente que ele está governando, de fato, para todos.